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COMEÇO

O intelectual brasileiro continua tocandinho na viola

o toque rasgado da sua pasmosa inércia humana

 

Mário de Andrade, Diário Nacional 10/04/32


 

          Isso era pra ser um encarte, mas virou uma fonocaderneta. Digamos, um disco de música que saiu da tensão com a pesquisa: daí que o QR code nesse livrinho leve para as composições musicais, feitas em diálogo com os assuntos dos textos. Virou também uma espécie de mapa mudo - que é aquele mapa que tem só as fronteiras desenhadas, para ser preenchido com o que quiser. Nesse caso, fizemos um mapa mudo de São Paulo, que colorimos com sons.

          Para as bordas desse mapa paulista partimos da pesquisa de Mário de Andrade. Vão reeditados aqui dois textos pouco visitados do escritor, cuidadosas anotações feitas de corpo presente sobre festas paulistas: um Moçambique (em Santa Isabel, 1933) e uma Dança de Santa Cruz (em Carapicuíba, 1935). Estão repletos de questões fascinantes e pouco exploradas sobre a cultura tradicional do estado de São Paulo. Aliás, resolvemos reproduzir o texto integral de Mário, mantendo as acentuações, ritmos e grafias do original. 

         E mais: usamos gravações "de campo" da música tradicional paulista, feitas pela Discoteca Pública idealizada por Mário quando o escritor era diretor do Departamento de Cultura. Então, junto com os textos, essas gravações feitas em cidades do interior paulista há uns 80 anos compuseram nosso mapa mudo, sobre o qual derramamos tinta, fizemos riscos, adicionamos sons e escrevemos coisas.

          Escrevemos também textos nossos, impressões sobre a rica pesquisa de Mário: da pioneira discoteca municipal criada pelo escritor fala o texto “São Paulo fonografado”, escrito junto com Biancamaria Binazzi - que amorosamente nos levou até o reino onde habitam surdamente, em estado de arquivo, os discos que usamos. (Agradecemos em particular a Rafael Vitor Barbosa Sousa, da Discoteca Oneyda Alvarenga do CCSP, que mediou os trâmites para conseguirmos incluir as gravações originais nesse site). Vale pensar que não apenas esses discos, mas também os textos, filmagens e fotografias feitas em São Paulo pela equipe do Departamento de Cultura são a gênese, o laboratório e, de certa forma, a parte primeira e paulista da famosa “Missão de pesquisas folclóricas”. Já o texto “Paulicéia desordenada – modernismo e poder” estuda o contexto político no qual Mário produziu esses estudos sobre cultura paulista; foi escrito em parceria com Carlos Pires, pós-graduado em desordenar ideias. Além desses, o texto "Mário de Andrade, Moçambique e a Santa Cruz" estuda em particular os meandros dos dois textos de Mário que reeditamos aqui.

 

          Enfim, Mapa-mudo, então, é uma galera, um catadão, um coletivo de compositores, instrumentistas e pesquisadores musicais. A presença de Ricardo Zohyo - contrabaixista, mestre e amigo - é um privilégio e um guia: sua composição “Insano”, um cateretê ao mesmo tempo bem paulista e experimental, abre nossos ouvidos para as insanidades do tradicional. Completando o rancho, temos o ponteado livre do piano de Daniel Grajew, a bateria roceira de João Fideles, Diogo Maia com seu grasnado exato de clarone, o violoncelo internacional de Ian Gottlieb e eu mesmo nas flautas, viola caipira e textos. Temos ainda Gustavo Vale na captação, mixagem e masterização, Maria Fernanda Carmo na revisão propositiva e criação online. 

 

         O resultado deu nisso, um livro sonoro, uma fonocaderneta. Não se sabe se terá serventia, se presta pra alguma coisa ou se ficará apenas cagado de ave. Da nossa parte, vamos tocandinho aqui nossa viola.

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